quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Carta aberta de militar da Marinha a Ricardo Boechat



Sr. Jornalista!
Reitero a correspondência remetida a V. Sa. no dia 12 de outubro e não considerada em sua programação até o momento.
Reporto-me à matéria veiculada em vosso programa diário, edição de 08/10, quanto ao esgotamento do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, e outros assuntos debatidos com outro colega jornalista, relacionados com a Marinha do Brasil, com fulcro em missiva de um Oficial Superior da Marinha, que não se identificou. A reportagem em apreço pode conduzir a interpretações equivocadas por parte do grande público, perante as conclusões incompletas e parciais, expostas “ao vivo” por V. Sa., motivadas pela ausência de pesquisa a respeito, que deveriam ter sido promovidas pelo “Jornalismo” da Band.
Inicialmente, devo assinalar que, diferentemente do colega missivista, tenho nome e sobrenome, conforme subscrito ao final. Embora eu seja um Capitão-de-Mar-e-Guerra do Corpo da Armada, na Reserva, ressalto  que não represento a Marinha do Brasil na presente manifestação; represento o inconformismo pessoal em  face de vossas colocações e as de vosso colega jornalista. Muito menos promovo essa carta por interesses pessoais; afinal, o único elo   que tenho com a Marinha é sentimental e de profunda gratidão, por ter contribuído com a formação cidadã de um filho de camelô com uma serzideira numa pessoa de nível superior e ter me possibilitado exercer uma profissão honrada e digna.
Em que pese ser seu ouvinte nos trajetos motorizados, quando os   horários dos deslocamentos permitem, confesso minha surpresa pela forma emocional como o assunto foi tratado.  A impressão que tive foi a da ausência de suporte à V. Sa., por parte da equipe de jornalistas e estagiários da Rede. Afinal, permita-me o respeitoso juízo, considerei inaceitável a ausência dos requisitos que entendo indispensáveis ao bom jornalismo – que V. Sa. pratica - e que tem o superior compromisso com a verdade: pesquisa, checagem sobre os fatos e fontes e imparcialidade. Humildemente, também acrescentaria uma boa dose de prudência no trato de matéria complexa e polêmica, que entendo desnecessário sugerir a um consagrado profissional com mais de quatro décadas de experiência e vivência nos principais veículos brasileiros.
No que tange ao tema da reportagem - esgotamento sanitário e despoluição da baía de Guanabara - independente das causas sobejamente conhecidas que levaram ao estado crítico de nossa baía,  entendo ser lamentável que a rede do Arsenal de Marinha ainda não esteja conectada à rede coletora da Concessionária CEDAE. Mas também entendo lamentável o Sr não ter pesquisado o porquê.
Em que pese o compromisso institucional da Marinha do Brasil com a despoluição, não só no Rio de Janeiro, como nas demais Bases, Navios e órgãos, também é lamentável a falta de compromisso político dos governantes que não assentam as redes coletoras corretamente dimensionadas à população crescente; isto sem contar a falta da renovação das redes existentes, cujo último grande reparo, no Rio de Janeiro, ocorreu no governo Carlos Lacerda.
Aliás,  não só no Arsenal a coleta é deficiente; ela inexiste em cerca de 16% dos domicílios cariocas. No caso do Arsenal de Marinha, existe a atenuante da estação de tratamento lá instalada, que, decerto, não é do vosso conhecimento. E não adiantam estatísticas favoráveis: de fato, o Rio é  o segundo município brasileiro mais privilegiado em termos de saneamento básico, após São Paulo, obviamente.
Mas a triste constatação, que V.Sa., como pessoa bem-informada, tem conhecimento, que o sudeste e o Distrito Federal são exceções. No Amapá, por exemplo, apenas 4% dos domicílios têm acesso à rede coletora de esgoto. A média brasileira de domicílios desassistidos é algo entre 43 e 46%, segundo a última pesquisa PNAD, o que também é lamentável. E V. Sa. sabe muito bem o resultado da falta  do  saneamento básico. Nas áreas em que o esgoto corre a céu aberto, as despesas com a assistência de saúde primária multiplicam-se por quatro. Afinal, de cada real investido em saneamento básico, o estado economiza quatro na rede hospitalar.
Mas não nos desviemos da questão central: causou estranheza, na vossa matéria, os seus repórteres não buscarem informações junto à Direção do Arsenal de Marinha sobre o assunto, que permitiria informar o grande público acerca do quadro completo da situação enfocada, qual seja, as obras em andamento, as dificuldades técnicas ou legais, prazos, recursos financeiros etc.
Esse aspecto me deixou por demais inquieto, porque é sabido que a Rede Bandeirantes, nos seus diversos e conceituados veículos, tem feito do jornalismo o seu contraponto às concorrentes. E isso não ocorre só no sudeste, onde se concentra a esmagadora maioria das verbas publicitárias. Idêntica postura assume, por exemplo, a RBA na Amazônia. No caso em riste, não seria difícil um deslocamento de uma das diversas viaturas  da  Rede,  da Rua Álvaro Ramos à Ilha das Cobras, no centro da cidade, onde se localiza o AMRJ, sigla que identifica o Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro, uma instituição com 256 anos de existência, nascida, como é óbvio, ainda no Brasil Colônia.
No Arsenal, com certeza, seriam fornecidas maiores informações, como  exemplo, a de que a obra de ligação com a rede da concessionária, vislumbrada para julho de 2014, atrasou por questão técnica relevante, dada a especificidade do solo por tratar-se de uma ilha; ou das estações de tratamento implementadas, diante da inexistência de uma galeria de cintura apropriada da  concessionária em terra firme.
Nunca é demais nos lembrarmos do sumidouro de dinheiro público gasto no saneamento periférico da baía de Guanabara, há longo tempo, cerca de 25 anos, exatamente pela demora de se implementar uma rede coletora. Teve dinheiro nosso, do Banco Mundial, dinheiro japonês e com certeza de outras fontes, literalmente no ralo, nessa história toda. É fato que não existia a galeria de cintura até há dois anos. Só há pouco passou-se a ter condições de conectar-se redes tributárias, no centro do Rio, à coletora de 1000 milímetros. A programação do AMRJ era para 2014; atrasou um ano por conta da “abundância” de verbas do governo federal  destinadas às Forças Armadas.
Como V.Sa. observa e tem ciência, em pormenores, trata-se de uma questão antiga, cujas duras palavras ditas por V. Sa. em seu programa, a respeito do Arsenal de Marinha, seriam mais adequadas e, com certeza, fidedignas da situação, se a sua assessoria tivesse ofertado à produção todas as informações necessárias e coletadas na fonte, desprezadas pela sua equipe, como grave ofensa ao princípio do contraditório.
Para finalizar neste tópico, uma boa idéia seria a sua equipe de jornalistas, por ocasião da visita que se faz obrigatória ao Arsenal, passar a conhecer a história do AMRJ, os atuais planos, a Escola Técnica mantida e administrada pelo Arsenal, que oferece oportunidades de vida a jovens, os maiores diques abaixo do Rio Grande, na América Latina, os navios construídos, ou, ao menos, apreciar o Navio-Aeródromo São Paulo, lá atracado, que V. Sa. também comentou e atacou sem qualquer critério, com base, apenas numa carta apócrifa, cuja motivação possa estar relacionada com a caótica situação de verbas que os  Chefes Navais estão vivenciando no momento...
Bem...como o Sr. falou muito da Marinha do Brasil (e mal), não posso parar por aqui!
O Sr e o seu colega, de quem não guardei o nome, comentaram a respeito da aquisição de um novo navio francês, um Navio de Assalto Anfíbio, de nome SIROCO na Marinha da França, discorrendo uma série de contrariedades à sobredita compra.
Com certeza, não sou a pessoa mais indicada para esgotar (sem trocadilho) o assunto e suprir-lhe as informações que seus assessores não lhe forneceram. Como exposto antes, dirijo-me a V. Sa. inconformado  com o desrespeito à Força Naval. Um representante oficial da MB ser-lhe-ia muito mais útil que este Autor no esclarecimento dos fatos elencados na reportagem.
Mas posso adiantar que é praxe das Marinhas de países com menor capacidade financeira de se valer, além de navios novos, de navios ditos de “segunda mão”, como é o jargão. Esse procedimento não é privilégio da Marinha do Brasil. Exceto sete ou oito Marinhas vinculadas aos países mais desenvolvidos, as demais adotam esse procedimento para complementar as suas necessidades operativas.
O Brasil possui um extenso programa de aparelhamento de suas Forças Armadas que contemplam meios novos, vários construídos em território nacional, ou compras programadas no exterior, inclusive aquisições de oportunidade, as quais, como o próprio nome indica, referem-se a meios necessários, mas não vislumbrados no momento.
Recentemente, como exemplo, a Marinha do Brasil incorporou ao seu inventário três navios-patrulhas oceânicos, novíssimos, construídos na Inglaterra e inicialmente direcionados a outro país. Por algum motivo, os contratos foram desfeitos e a nossa Marinha aproveitou o momento, promovendo uma compra de oportunidade. Esses navios já operam sob o pavilhão nacional.
Observa-se que não é só de “navios velhos” que a Marinha do Brasil é composta, como o Sr. comentou. Há muitos meios aqui construídos e que nos enchem de orgulho, tal o orgulho que sentimos no aperfeiçoamento de tecnologia própria na construção do futuro Submarino Nuclear Almirante Álvaro Alberto.
No caso do Navio de Assalto francês, a sua obtenção foi motivada pela recente desativação de meio correlato; daí, a necessidade de recompletar a Esquadra.
O navio em  causa também era pretendido por Portugal, que desistiu. A Marinha do Chile adquiriu, em 2011, outro navio da mesma classe Foudre, que no Chile passou a ostentar o nome de “Sargento Aldea”. Como visto, esse é um procedimento usual.
Uma comissão da Diretoria Geral de Material da Marinha inspecionou o navio e recomendou a sua aquisição.
Por esse rápido esclarecimento, o Sr. pode constatar que essa iniciativa não se trata de uma intervenção amadora ou unilateral de alguma autoridade naval. Tudo é muito bem pensado e avaliado, assim como foi a aquisição do Navio-Aeródromo FOCH, o atual São Paulo, diferentemente do que foi comentado por V. Sa.
Por oportuno, no caso da Aviação Naval, duramente conquistada ao longo de quase 100 anos, desde as oficinas pioneiras na Ilha do Galeão na década de 20, o importante foi não perder a capacidade operacional e a doutrina. Nosso patrimônio naval de mais de oitenta helicópteros – as chamadas aeronaves de asa rotativas, atesta a nossa umbilical ligação com a aviação, inclusive a de asa fixa, que sempre contou com aviões operados pelos nossos irmãos da FAB. Oportuno citar que caças A-4, ora operados por pilotos navais,  adquiridos de segunda mão do Kuwait, no inicio da década anterior, estão sendo modernizados pela EMBRAER, em mais um esforço da Marinha pelo desenvolvimento tecnológico nacional, igual a tantas outras contribuições, que V. Sa. tem de conhecer, como os quatro Navios Hospitais na Amazônia e no Pantanal, ou a Estação Comandante Ferraz na Antártida, ou as patentes requeridas pelo Instituto de Pesquisas da Marinha, ou a construção naval no Arsenal de Marinha, o maior parque industrial da América Latina, ao lado do aperfeiçoamento da coleta sanitária na Ilha das Cobras, de que falamos.
Resta claro que todos nós gostaríamos de obter os meios mais avançados, como foi a aquisição dos caças suecos Gripen NG, que demorou vinte anos. Mas nem sempre essa condição é possível, haja vista a situação econômico-financeira adversa nacional. Como manter os meios em bom estado de operação, inclusive no tocante à segurança do pessoal, se até os hospitais militares estão deficitários? Daí a necessidade de desmobilizar meios, como citado na reportagem, para reduzir o custeio da Força.
Boechat: Nesse quesito, na redução das despesas, a Alta Administração Naval se comporta igual à conduta empregada nas finanças pessoais, em situações de aperto. Está caro, desmobiliza, “desapega” como dizem os jovens. Claro que nenhum de nós aceita de bom grado a baixa  de meios. Mas o Comandante tem de manter a Força balanceada ante as necessidades do seu emprego em face dos escassos recursos recebidos, hoje, cada vez mais reduzidos. Por exemplo, atualmente, temos compromissos internacionais que não podemos abrir mão, como o Haiti, o Líbano ou o Timor Leste. São conquistas, preservadas com muito esforço pela Marinha. É o pavilhão do Brasil levado a outros mares, a outras terras, até com intervenções humanitárias, como foi o recente salvamento de refugiados, pela Corveta Barroso, a caminho do Líbano, no mar Mediterrâneo.
Mesmo com todas as restrições, inclusive, por vezes,  a necessidade de dispensar a tropa para economia de rancho, como citado em vosso programa, as Forças Armadas têm buscado a constante revitalização de seu meios, como a viatura blindada Guarani, o cargueiro da  FAB,  KC-390, produzido pela EMBRAER com verbas da Aeronáutica, os helicópteros Super Puma, construídos em solo pátrio, ou a construção em Itaguaí dos quatros submarinos convencionais (já havíamos construído seis submarinos antes, na década de 70 e na de 80) que conduzirão ao submarino nuclear após 2025. Assim como, tantos e tantos meios, aqui desenvolvidos, em décadas passadas, mostrando a capacidade da Marinha, do Exército e da Aeronáutica.
Por último, Boechat, lamento que o Sr. tenha endossado as palavras de um colega que dispõe de informações parciais, sem a observância dos mínimos preceitos jornalísticos e do princípio constitucional do  contraditório. O resultado só poderia ter sido uma reportagem incompleta, em desacordo com a sua carreira de jornalista consagrado.  Espero, de alguma forma, ter contribuído para o seu esclarecimento.
E quanto ao meu “colega naval”, que vos escreveu, com certeza se trata de um jovem idealista, amargurado com as agruras governamentais impostas à sua Força querida. Eu entendo esse colega, me coloco à disposição dele e o desculpo. Só não desculpo V. Sa. Inaceitáveis as suas falhas após tantos anos de labuta na imprensa.
Ao renovar a sugestão para uma entrevista com algum representante oficial da Marinha do Brasil, firmo, RESPEITOSAMENTE,

Rio de Janeiro, em 04 de novembro de 2015.
De Luca,  Vicente Roberto.
Capitão-de-Mar-e-Guerra do Corpo da Armada (Reserva Remunerada).
Engenheiro Mecânico, Eletricista e Eletrotécnico Industrial.
Advogado.
Perito Judicial.                             




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