segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O diplomata papa Francisco

Durante visita histórica a Cuba e aos Estados Unidos, papa arrasta multidões, fala de temas indigestos, incomoda os cristãos conservadores e tenta reconquistar os católicos americanos

Débora Crivellaro (debora@istoe.com.br) 

A palavra pontífice tem origem no latim e significa “aquele que faz pontes”. Nunca um título caiu tão bem para um papa quanto para o argentino Francisco, 78 anos. Em sua mais aguardada viagem nestes movimentados dezoito meses de pontificado, o líder máximo da Igreja Católica selou a reconciliação de Cuba e Estados Unidos, costurada durante meses por ele próprio, numa visita histórica a esses dois países. Desde que pisou em Havana, no sábado 19, Jorge Mario Bergoglio tem colecionado momentos carregados de simbologia, como a ida ao Congresso americano na quinta-feira 24, e lançado discussões por vezes incômodas para alguns de seus milhões de interlocutores. Falou sobre liberdade em Cuba. E sobre o direito dos imigrantes, a abolição da pena de morte, a degradação do meio ambiente, contra o comércio de armas, as guerras e o aborto nos Estados Unidos. Mas sempre sob um manto conciliador. “O mundo precisa de reconciliação, principalmente num momento de 3ª. Guerra Mundial em etapas como a que estamos vivendo”, disse. Mas engana-se quem lê essa visita papal como uma missão política – apesar de Francisco ter se tornado sim um dos maiores líderes do cenário mundial. Os gestos do latino-americano devem ser interpretados nas entrelinhas. “A viagem dele é pastoral, mas a fé não vem separada da realidade”, afirma o teólogo Antonio Manzatto. “Estando nos Estados Unidos, um lugar de tamanha importância para os mais pobres, ele tem de falar de refugiados, de sustentabilidade...Não vai falar de anjos ou a cor do véu de Nossa Senhora.”
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HISTÓRIA
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americano: 50 minutos de fala e 30 interrupções para aplausos

Diante de uma Nova York, a capital mundial do individualismo, aquecida e entregue ao carisma e à simplicidade de Jorge Mario Bergoglio, fica evidente que o argentino está mudando a narrativa do papado. Desde o começo de seu pontificado, houve uma tendência de rotular o antigo cardeal de Buenos Aires como um reformador, alguém que vinha para fazer vibrar a paralisada Igreja Católica. Certamente há alguma verdade nisso, afirma o vaticanista americano John Allen Jr. “A história do papado mudou de ‘tudo o que você não gosta na Igreja é porque causa do papa’ para ‘tudo o que você não gosta na igreja é apesar do papa’, afirma o colunista do “Boston Globe”. Apesar da simpatia que conquistou até entre os não católicos, Francisco não está navegando em mares calmos nesta visita, conforme explica o professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Antonio Carlos Alves dos Santos. Se encontrou uma Cuba apaziguada pela visita de seus antecessores, João Paulo II e Bento XVI – agora até o Natal é comemorado na ilha --, a situação é diferente nos EUA. Cerca de 21% da população americana se diz católica, enquanto 9% abandonaram recentemente a religião. A perda de fieis tem sido notória. Em todo o País, igrejas são fechadas ou fundidas por falta de público ou de padres.
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Fora o escoamento do rebanho, o papa vive uma relação curiosa com os poderosos católicos americanos, um dos países onde a chaga do abuso sexual cometido por religiosos é mais grave. Os onze cardeais da América foram as peça-chave para sua eleição. E a igreja americana é a segunda maior financiadora do Vaticano, atrás apenas da alemã. Em contrapartida, Francisco tem sofrido duros golpes da ala conservadora, que está representada também no Partido Republicano, por suas falas contra a acumulação de riqueza, a favor do combate ao aquecimento global e pelos imigrantes. O deputado republicano pelo Arizona, Paul Gosar, por exemplo, tem feito um boicote explícito ao pontífice. Outros o chamam de “papa vermelho”, “peronista argentino” e o acusam de ser uma penitência. Com sua postura sensata e gestos empáticos, Francisco tem tentado acalmar os ânimos, falando contra o aborto e a favor da família, tema caro a esse grupo conservador.
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Se tem pisado em brasas por causa da direita católica, a relação com o presidente Barack Obama vai muito bem. Os dois comungam de muitas posições em comum e sabem da importância global do outro. Afinal, um papa não pode se dar ao luxo de  ignorar Washington se pretende que algo seja feito. E nenhum presidente pode dar as costas para um líder religioso à frente de um rebanho de 1,2 bilhões de seguidores – incluindo aí 70 milhões de americanos, um quarto dos EUA. O país liderado por Barack Obama gosta de encarar o Vaticano como um aliado, um Estado com raízes ocidentais comprometido com os mesmos valores de liberdade e direitos humanos. Muitas vezes isso é verdade. Mas papas e presidentes também já colidiram, como durante os anos 1990, quando João Paulo II travou duras batalhas com Bill Clinton, nas duas conferências da Organização das Nações Unidas, uma no Cairo, em 1994, sobre controle da população, e outra em Pequim, em 1995, sobre as mulheres.
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Francisco sempre busca as semelhanças em seus discursos. Conclamou a vocação para a liberdade do povo americano, colocando-o diante do espelho de sua própria história em pleno Congresso, ao enaltercer líderes como Abraham Lincoln e Martin Luther King.Mas também critica duramente o capitalismo, que chama de “globalização da indiferença”. A opção preferencial pelos pobres anima todos os seus gestos. Numa mensagem suave nas formas, deixou um recado claro aos congressistas, 31% deles católicos, na quinta-feira 24: “Façam com os outros o que querem que façam com vocês.” O latino-americano, que durante vinte anos visitou as favelas da periferia de Buenos Aires, diz que vê a Igreja como um hospital de campanha depois da batalha. “O que mais precisamos ter hoje em dia é a capacidade de sanar feridas e aquecer os corações dos fieis. Eles precisam da proximidade do contato.” O fazedor de pontes Francisco tem feito isso como poucos.
Fotos: JIM WATSON/AFP, Andrew Harnik/ap; ALEJANDRO ERNESTO, ALEX CASTRO - AFP

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