PEC 241: essência do mal ou começo do bem?
Delfim Netto (*)
26 de outubro de 2016
As críticas que se fazem à Constituição de 1988 não atingem o que se pode chamar a sua “filosofia”. Ela pretende instituir uma sociedade onde os homens possam gozar de plena liberdade para se realizarem; onde a igualdade de oportunidades é um valor importante e onde a atividade econômica será, preferencialmente, exercida pelo setor privado, sob o controle de um Estado constitucionalmente limitado, cujo poder incumbente é renovado pelo sufrágio universal em período certo, através de pleitos livres.
Em outras palavras, um Estado suficientemente forte, capaz de regular o bom funcionamento dos “mercados”, que coordenarão as atividades econômicas privadas.
A construção de tal sociedade exige dos governos eleitos uma profunda compreensão dos mecanismos para atingir o desenvolvimento econômico inclusivo e sustentável. Eles devem procurar, permanentemente, a harmonização do aumento do consumo (melhor distribuição) com o aumento do investimento (maior produção). Se o poder incumbente quebrar essa harmonia através de uma política voluntarista, será apenas uma questão de tempo até que murche o crescimento e, depois, haja retrocesso distributivo, exatamente o que hoje estamos vivendo.
É preciso insistir na tragédia fiscal em que fomos metidos? Não basta lembrar que, de uma força de trabalho de 102 milhões de pessoas, 12 milhões estão desempregadas (procuraram ativamente emprego sem sucesso); outras 5 milhões precisam e querem trabalhar mais e que outras 6 milhões estão fora do mercado de trabalho porque perderam a esperança de encontrar emprego? Não é uma insanidade insistir no mesmo e esperar que o resultado seja diferente? Há alguma questão mais urgente do que recriar as condições para recuperar o nível de emprego, único caminho para voltar a crescer e redistribuir?
O Brasil não tem escolha e não há uma “bala de prata” para matar todos os seus problemas. Mas é evidente que a recuperação das condições do crescimento do PIB e do emprego passa por uma política fiscal que compatibilize, num horizonte de tempo aceitável, o crescimento das despesas primárias com o das receitas líquidas.
O governo Temer tomou a decisão de iniciar esse processo apresentando ao Congresso Nacional a PEC 241, já aprovada em primeiro turno na Câmara. Ela estabelece um limite para os gastos primários globais, o que não é nenhuma novidade no mundo, e propõe esforço não maior do que fizeram um bom número de países. Talvez a sua grande virtude seja a de lembrar aos brasileiros que a resposta certa à pergunta: você prefere A ou B não é, infelizmente, ambos!
Boa parte das críticas à PEC 241 confirma como é difícil fazer prevalecer o razoável contra o poder gigantesco que adquiriram as corporações organizadas. Uma delas chegou a afirmar que se põe um risco à própria democracia, pois cassaria os direitos do Legislativo e ameaçaria a “independência” do Judiciário e do Ministério Público, um claro exagero.
Ao contrário, pela primeira vez em 30 anos, o Legislativo terá de cumprir o seu papel fundamental: escolher as prioridades de um Orçamento construído a partir da melhor estimativa de receita possível e fiscalizar a sua execução. Até aqui a escolha foi risonha e franca! O resultado só não foi pior porque a variável de ajuste era “a boca da caixa” e o refúgio eram os “restos a pagar”…
Será exatamente o oposto com a PEC 241. Fixa-se um teto nominal para a despesa primária total (a despesa efetiva do exercício anterior corrigida pela taxa de inflação) e o Congresso, na sua mais plena soberania, escolherá as prioridades. Respeitará um piso para o dispêndio de educação (que em 2017 já obedecerá aos 18% da receita líquida e depois será corrigido pela inflação) e outro para as despesas de saúde (para o qual se antecipou a vinculação de 15% da receita líquida que só ocorreria em 2020). Tem mais. Se o Congresso julgar que tais pisos devem ser aumentados, tem todo o poder para fazê-lo: basta decidir que eles têm maior prioridade do que o que deverá ser cortado para manter a despesa constante. A PEC 241 tem, sim, seus problemas, mas não são esses…
Apenas para dar um exemplo obviamente absurdo, mas tão extravagante como uma das críticas, suponhamos que, num improvável ataque de lucidez, o Congresso Nacional – em nome da sociedade que o elegeu – decidisse, para aumentar os gastos com educação e saúde, cortar suas próprias despesas e congelar seus salários, juntamente com os dos outros Poderes que, até as inexistentes esquinas de Brasília sabem, são um múltiplo dos equivalentes do setor privado que os financiam. Quem reclamaria?
Afinal, qual é o poder probatório dos exercícios “científicos” (que mal escondem a generosidade de uma esquerda infantil) que apontam a PEC 241 como a essência do mal escondido no neoliberalismo? Muito pequeno! Como o futuro é opaco, “escolhem” suas hipóteses (às vezes inconscientemente) para obter o resultado que desejam. Como ensinou Pareto, “com hipóteses convenientes podemos provar qualquer coisa”…
(*) Professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento e escreve às terças-feiras no jornal Valor Econômico